unfinished business
Um candeeiro a petróleo, uma luz difusa no reflexo da água, noite
escura. A imagem cada vez mais distante, um corpo inerte que se
afunda.
Acordou em sobressalto num quarto estranho, que depois reconheceu ser
o do hotel onde se tinha instalado. Abriu a janela e acendeu um
cigarro, observando a cidade a mover-se, sonolenta. Sentia o peso das
horas de trabalho, o azedume de quem o recebia, a hipocrisia nos
gestos e no trato. Não se deixou abater. Tomou um duche longo,
lavando-se da noite inquieta. Barbeou-se com método e vestiu-se com
a sobriedade de sempre. Desceu à sala de refeições, onde lhe
serviram um bom pequeno-almoço. Observou os hóspedes de outras
mesas, todos com o ar leve de quem está de férias, na maioria
estrangeiros, com certeza.
- Bom
dia, Álvaro!
O cumprimento apanhou-o quase desprevenido, mas a familiaridade na
voz lembrou-o dos três colegas de trabalho que o acompanhavam.
- Bom
dia, Jorge.
- Estavas
noutro mundo, homem. Dormiste descansado?
A pergunta parecia trazer um toque de ironia. Álvaro respondeu com
naturalidade.
- Bom,
na verdade, poderia ter dormido um pouco mais. Mas, já sabes como
eu sou, um pássaro madrugador.
- Sim,
sei. Fazem-te falta os ares da Madeira, é o que é.
- Talvez,
sim. Esta comissão de serviço já vai longa, mas acredito que
vamos no bom caminho.
- Sim,
claro. Olha lá aqueles melros! Eles é que não madrugam nem que
haja terramoto – olhando na direcção do elevador, Jorge vai
cofiando o bigode com ar divertido.
- Ouçam
lá, parceiros, não tarda nada vão sem pequeno-almoço e ainda vos
dá a fraqueza.
Joaquim e Sérgio servem-se de um café e sentam-se com os colegas.
- Eh
pá, vocês estão com uma cara de maus fígados! Que raça de
gente. Então só eu é que tive bom dormir, hoje? Aqui o meu
compadre acordou com os passarinhos, e vocês os dois parece que
dormiram em asa de abutre.
A boa disposição de Jorge acabava sempre por por contagiar o ritmo
de trabalho de Álvaro. Levantou-se de imediato.
- Meus
amigos, vamos lá começar o dia, que isto está a correr bem.
Podemos dar em doidos, mas havemos de chegar ao fim.
- Ora,
assim é que é falar. Mexam-se lá, ó artistas. Vamos a isto!
Chegados à dependência do Banco na capital, os quatro inspectores,
liderados por Álvaro, foram recebidos com a frieza habitual.
- Bom
dia.
- Sim?
- Já
posso falar com o Dr. Figueiredo?
- Infelizmente,
não. O Dr. Figueiredo continua de baixa.
- Pois,
compreendo. Nesse caso, eu e os meus colegas vamos para o gabinete
do costume.
A rotina repetiu-se ainda por outros três meses. Longas horas
sentados à secretária analisando documentos e cruzando dados. No
gabinete exíguo, sem janelas, o ar tornava-se quase irrespirável.
Ao fim de cada dia de trabalho, era um alívio poder sair daquele
espaço, mover-se, respirar, mudar de ritmo.
Entretanto, Álvaro tinha-se instalado num apartamento pertencente ao
Banco, evitando assim os dedos acusadores. Havia já quem dissesse
que o inspetor queria apenas umas férias pagas na capital, num bom
hotel, com boa mesa. Álvaro sentiu-se sempre injustiçado com este
tipo de comentários, mas tentou não se deixar afetar. O tempo
acabaria por revelar a verdade.
Os quatro jantavam regularmente num restaurante de Porto Brandão, o
“Mira-Rio”. O ambiente era agradável, a comida bastante saborosa
e as doses bem servidas. Além disso, a distância de Lisboa era
suficiente para que se sentissem um pouco libertos, afastados dos
assuntos de trabalho. No entanto, com o passar do tempo, Álvaro já
não conseguia esconder a inquietação. Mostrava-se cada vez mais
taciturno e quando falava era apenas para exprimir a preocupação
com os factos.
- Temos
aqui um grande berbicacho.
- Ó
compadre, deixa-te lá de dramas, homem. Afinal é o nosso trabalho,
ou não é?
- Claro
que é o nosso trabalho, mas tens a noção do que temos encontrado
e de quem está envolvido, não tens?
- Fala
lá baixo, que as paredes têm ouvidos. Mas é claro que tenho
noção, homem. Mas vamos com calma, havemos de dar a volta a isto.
- Como
assim, “havemos de dar a volta a isto”? Já fizeste bem a conta
à quantidade de inimigos, de gente do poder a quem estamos a
apertar os calos? Já pensaste bem nas consequências disto tudo?
- Sim,
já fiz contas a isso tudo, mas não vale a pena dramatizar, porra.
E talvez se possa aligeirar qualquer coisita, aqui e ali. Fechar os
olhos, sei lá!
- O
que estás para aí a dizer, Jorge? Mas tu achas mesmo que eu sou
pessoa de fechar os olhos à realidade? O que queres dizer com
aligeirar as coisas? Pensas que isto é uma brincadeira?
- Pronto,
homem, não se fala mais nisso. Só queria que comêssemos em paz e
que não te atormentasses com essas tuas fixações.
Sérgio
e Joaquim permaneciam calados, trocando olhares. Álvaro resolveu
calar-se também. Havia já algum tempo que tinha reparado nas
pequenas sugestões que iam surgindo nas conversas, mas desta vez
Jorge tinha ido longe demais. Aligeirar qualquer coisa? Fechar os
olhos? Começou a sentir-se encurralado, questionando as verdadeiras
intenções da sua equipa. Decidiu que a partir desse momento iria
manter para si algumas das informações que fosse recolhendo.
Terminou a refeição e manteve-se em silêncio. Os outros três
acabaram a noite num bar de Lisboa, mas ele regressou ao
apartamento. Decidiu telefonar à mulher.
- Deolinda?
- Oh,
meu querido. Tinhas-me preocupada. Já não ligavas há tanto tempo.
Está tudo bem?
- Sim,
está tudo bem. Mas este trabalho tem-me dado água pela barba.
Estou para aqui a descobrir muitos podres, tantos que nem fazes
ideia. Gente importante. Ainda me vai trazer problemas.
- Pois,
tu bem dizias. Mas para que é que eles te foram escolher para a
inspeção, valha-me Deus?
- Vá,
deixa lá isso. Não é nada de mais - tinha notado a preocupação
na voz de Deolinda e resolveu mudar de assunto - Como estão os
miúdos?
- Ora,
estão bem. O Mário lá anda trabalhando na serralharia. Penso que
o nosso pequeno é que não vai andando bem nos estudos. Mas já não
falta muito para acabar o ano. Pode ser que tudo fique bem. E tu,
quanto tempo ainda ficas aí?
- Não
sei. Penso que não falta muito, também. Talvez o Pedro acabe o ano
e eu acabe isto por aqui. Não sei.
- Deus
queira! Deus queira! Que tu estás-me falando cá com uma voz...
- Não
é nada, Deolinda. Não te preocupes. Hoje estou só cansado, é só
isso.
- Conheço-te
bem, conheço-te bem. Não vou deixar de ficar ralada, não senhor.
- Não
te apoquentes. Um dia destes volto a ligar. Agora tenho de ir.
Beijos para os rapazes.
- Beijinhos,
meu querido. Bom descanso.
- Beijos.
Naquela noite, não conseguiu dormir. Ficou a olhar a languidez das
nuvens, a cidade quieta, os gatos no seu movimento morno, o descanso
dos pombos nos beirais. Todo aquele quadro lhe dava a sensação de
pertença, de dignidade, muito diferente da realidade humana.
Decidiu entregar-se aos papéis, analisar todas as anotações, as
incongruências, os detalhes de tudo o que o vinha atormentando. Não
havia dúvidas. Toda aquela gente estava envolvida. Era gente
corrupta que enchia os cofres particulares com tramas bem
engendradas. Tudo aquilo era demasiado grande, o maior dos monstros,
desde que se iniciara na inspeção. Sentia agora que a tarefa era
ainda mais complexa, depois da conversa ao jantar. Questionava-se se
os colegas estariam tão empenhados quanto ele. Estariam dispostos a
dar a cara pelo que tinham descoberto ou iriam acobardar-se? Álvaro
estava seguro de que o resto da equipa não tinha ainda a visão
completa do quadro, de tudo o que tinha sido recolhido e interligado.
Como reagiriam quando soubessem?
Ia amanhecendo. A presença humana dominava agora as ruas da cidade.
As primeiras vozes, alguém que tosse, o ruídos dos carros que
começam a circular. A cidade inquieta-se. A noite recolhe-se nas
pequenas sombras, no silêncio das caves, no sono dos gatos.
Preparou um café, vestiu-se e decidiu caminhar um pouco pela cidade.
Era uma manhã de Maio esplêndida, cheia de promessas de vida.
Imaginou o colorido da sua ilha, a água fresca a correr nas levadas,
a vegetação exuberante. Sentou-se por momentos junto ao Tejo a
olhar o voo plano das gaivotas, a serenidade do rio.
Chegado ao Banco, agiu com naturalidade, embora lhe fosse impossível
disfarçar o cansaço. As olheiras fundas e os movimentos torpes
denunciavam-no. Reuniu-se com a sua equipa para lhe comunicar o que
tinha decidido naquela noite. A recolha de dados estava concluída.
Era a ele que cabia a elaboração do relatório final.
A notícia foi recebida com desagrado. Os três colegas consideravam
que o trabalho estava longe de ser concluído, que havia ainda muitos
dados por apurar.
- Sim,
admito que ainda haja dados por apurar. Mas, o que conseguimos
reunir é mais do que suficiente para constituir elementos de prova.
Esta noite estive a cruzar todos os dados que recolhemos e não há
lugar para dúvidas.
- Mas
afinal que conclusões são essas, chefe? E nós não vamos
participar na elaboração desse relatório?
Sérgio e Joaquim mostravam pela primeira vez algum interesse por
todo o processo. Tinham feito sempre o menor dos esforços por
concluir a investigação de forma célere e rigorosa. Álvaro havia
pensado por diversas vezes por que razão aqueles dois lhe tinham
sido enviados para a equipa.
- Entrego-lhes
uma cópia do relatório na devida altura, com certeza. Hoje é dia
para deixarmos o gabinete em ordem e para eu pedir uma reunião com
a gerência e com os quadros superiores. E pronto, o caso fica
arrumado.
Jorge tinha permanecido calado. Trocara apenas alguns olhares com os
outros dois e acabou por intervir apenas para falar no jantar.
- Bom,
se assim é, acho que podíamos voltar ao “Mira-Rio”, amanhã ou
depois, e fazer um jantar de despedida. O que acham? Vou fazer uns
telefonemas.
Não esperou pela resposta. Sérgio e Joaquim não escondiam o
enfado, mas começaram a tratar de arrumar os seus pertences e de
deixar o gabinete em ordem. No final da manhã, Álvaro almoçou no
centro da cidade e recolheu-se ao apartamento para uma curta sesta.
Jorge tinha-lhe telefonado a avisar que o jantar de despedida,
conforme lhe tinha chamado, estava marcado para dali a dois dias,
para a noite do dia 16. Entretanto, Álvaro dedicara-se profundamente
à elaboração do relatório.
Na manhã do dia 16, acordou mais cansado do que quando se deitara.
Tinha sonhado com águas revoltas, algas que lhe prendiam os pés,
seres aquáticos medonhos. Sentiu-se indisposto. Abriu as janelas e
fumou dois cigarros seguidos. Queria muito deixar de fumar, mas este
não era com certeza o dia adequado para essa demanda. Assim que
regressasse a casa, mais descansado depois de acabada a inspecção,
pensaria melhor no assunto.
Preparou um café e sentou-se de imediato para escrever mais umas
páginas do relatório, com atenção redobrada aos detalhes.
Surpreendeu-se com a energia que subitamente se apoderou dele, com o
ritmo certeiro das palavras e dos cálculos. Quando o telefone tocou,
apercebeu-se da escuridão que o abraçava, completamente perdido no
tempo.
- Estou?
- Álvaro?
Onde é que te meteste, homem? Já perdemos um barco. O próximo sai
daqui a 15 minutos e tu ainda estás em casa? O que te deu?
- Jorge?
Eh pá, desculpa. Deixei-me levar pelo entusiasmo. Daqui a pouco
estou aí.
- Vá
lá, despacha-te. O bacalhau frio sabe a palha, homem.
- Sim,
até já.
Foram os últimos a entrar no cacilheiro, já noite escura. Acabou
por se distrair na viagem. O entusiasmo que sentia em relação ao
jantar foi-se avolumando, sem entender bem porquê. Talvez sentisse
que era uma boa compensação por um trabalho bem feito.
Chegados à outra margem, percorreram a pé a curta distância até
ao “Mira-Rio”. A boa disposição de Álvaro contrastava agora
com o ar apreensivo dos colegas. Um pombo entre corvos.
- Então?
Isto é que vai para aí um silêncio. Estão com fastio?
Jorge pareceu acordar de um qualquer cenário em terra distante.
- O
quê?
- Bolas,
está mesmo tudo a dormir. Perguntei o que se passa nesse silêncio
todo, se foi a fome que vos tirou o pio.
- Ah!
Agora que falas nisso, acho que até perdi a fome. Mas quando vir a
posta de bacalhau à minha frente, o caso muda de figura.
Joaquim e Sérgio permaneceram em silêncio, mas Álvaro já se tinha
acostumado ao facto de aqueles dois só saberem falar de dinheiro, e
deixou-os no seu canto.
Já no “Mira-Rio”, foram recebidos como velhos amigos e
acompanhados à mesa que lhes estava reservada.
- Então,
cavalheiros, trago o vinho da casa?
- Sim,
traga-nos o vinho da casa e uns pastéis. Parece que a estes homens
lhes deu a fraqueza.
Vieram os pastéis de bacalhau, rissóis e croquetes; azeitonas,
presunto e broa de milho. A atmosfera àquela hora estava já mais
descontraída. Apesar de ser um restaurante bastante requisitado,
apenas algumas mesas permaneciam ocupadas, devido ao adiantado da
hora. Foi servida a refeição e os quatro inspectores pareciam agora
quatro verdadeiros amigos, animados pela conversa e pelo vinho. A
sala foi ficando vazia até restarem somente os quatro convivas.
Pediram uma aguardente velha para ajudar à digestão e um café para
lhes redobrar o ânimo.
Subitamente, Álvaro começou a sentir-se indisposto e,
interiormente, repreendeu-se pelos excessos da refeição. Tentou
recompor-se mas o corpo já não obedecia a qualquer estratégia.
Percebeu como era levado em braços, completamente inerte, sem
controlo. Chegado a uma divisão cinzenta, viu que havia apenas um
foco de luz, um candeeiro a petróleo. Delirava, com certeza. A visão
era algo imprecisa, “e os hospitais não têm iluminação a
petróleo”, pensou. Tentou respirar fundo para recuperar forças e
acalmar, mas sentiu-se desfalecer.
Recuperou os sentidos, amarrado a uma cadeira, ainda frágil.
Lentamente, voltou a ter a visão mais definida e foi decifrando o
local em que se encontrava, um armazém lúgubre, unicamente com uma
pequena janela de ventilação. Viu que era ainda de noite e sentiu o
ar quente e abafado do espaço. Pendurado no tecto, à altura de um
homem de média estatura, estava um candeeiro a petróleo. Não tinha
delirado. Percebeu que não estava só. Sentiu o cheiro forte de um
charuto barato, uma nuvem de fumo que ia revolteando, o ar cada vez
mais rarefeito.
- Ora,
até que enfim. O doutorzinho acordou!
“Doutorzinho?! Apanharam o homem errado. O que é que se passa?”
O pensamento era ainda lento, volúvel.
- Então
diga lá, doutorzinho. Andou por aí a meter o nariz onde não era
chamado, não foi? Quem se mete na merda, vai ter de levar com a
merda de volta. E você tem muita merda para engolir, muita merda!
Agora as coisas começavam a fazer sentido. Tinha de facto metido o
nariz em coisas perigosas, em muita merda, como o outro dizia. E
parecia que as consequências eram bem mais devastadoras do que
poderia ter imaginado.
- Ora
vamos lá começar a falar. Esse seu relatório foi mostrado a quem,
doutorzinho?
Foi analisando a capacidade de destruição daquele homem, o seu ar
de urso, a barba de três dias, o suor nauseabundo na camisola de
alças preta, desbotada. Os diminutivos irritavam-no, mas eram um
sinal de desdém, o que diminuía as hipóteses de negociação.
- Não
estou a perceber – conseguiu dizer com esforço.
- Oh,
o doutorzinho não está a perceber... Então vou-lhe explicar. Há
um relatoriozinho que está a fazer sobre um certo Banco, não há?
E eu nem quero saber o que está lá escrito. A ideia é mesmo essa,
não se saber o que lá está escrito. Por isso, vou repetir, só
esta vez. Esse relatório foi mostrado a quem?
- Não
foi mostrado a ninguém. Comecei a escrevê-lo hoje. Bom, não sei
bem se foi hoje, não sei há quanto tempo estou aqui, mas...
- Deixa-te
de merdas, doutorzinho. Mostraste esse relatório a quem?!
Álvaro conseguia perceber que o homem começava a perder o controlo,
mas não tinha outra resposta para lhe dar.
- É
o que estou a dizer. A ninguém! A ninguém!
- Bom,
pelo menos sei que não o mostraste aos pacóvios dos teus colegas.
Esses sempre estiveram connosco. Já fizeram desaparecer as
papeladas deles e receberam uns trocos. Mas tu não sabias disso,
pois não? Surpresa! - e solta uma gargalhada com gosto.
- São
uns cagões. Sabem que, se abrirem a boca, cortamos as goelas às
galdérias que têm lá em casa e aos seus rebentozinhos
mal-cheirosos. Mas tu és um caso à parte. Tu és perigoso. Mas eu
vou amolecer-te.
Álvaro percebia agora as reações dos colegas, o enfado, os
pequenos boicotes. Cerrou os punhos e sentiu como a raiva se
apoderava de todo o corpo.
- Cobardes...
- disse em surdina.
- Cobarde,
eu?
Sem esperar mais respostas, o “urso” puxou uma longa passa no
charuto e deixou-o em brasa. Soltou o fumo nos olhos de Álvaro e
espetou-lhe com o charuto na testa. A dor espalhou-se pela cabeça
como um capacete em chamas. Sentiu os ouvidos a estalarem num zumbido
forte, estremecendo. Os gritos fizeram um pequeno eco no armazém,
mais nada. Não viria ninguém acudi-lo, estava agora certo disso.
Deixou de ver por alguns segundos.
- Não,
não te vais apagar já, doutorzinho. Ainda falta muito caminho para
andar. A não ser que abras a boca e acabamos com a conversa - sem
aviso, espeta-lhe uma bofetada de mão bem aberta – Então, estás
acordado agora?
Álvaro começou a sentir a pulsação forte nas têmporas, um
batimento descompassado. Reparava agora que, de algum lugar próximo,
vinha um cheiro intenso a peixe.
- Vais
falar agora ou vais querer cagar-te todo?
- Já
lhe disse. Quantas vezes já lhe disse? Não mostrei o relatório a
ninguém. Ia mostrá-lo para quê? A quem? Está lá, na minha
pasta, na secretária do apartamento.
- Isso
já nós sabemos. Ou achas que somos parvos? O que eu quero saber é
a quem disseste o que lá escreveste, e o que ias escrever.
- Não
disse a ninguém, homem. Para quê insistir nesta conversa?
- Queres
que a gente vá cortar a goela à tua galdéria, doutorzinho? Se é
isso que queres, também se arranja.
- Não,
pelo amor de Deus, não faça isso! Eu já lhe disse que não falei
a ninguém no assunto.
- E
quem me garante que não falaste com ela?
- Mas
para que é que eu ia falar com ela sobre isto? Ela não tem nada a
ver com o assunto. Juro-lhe!
- Vamos
lá abrir essa boca.
- Que
mais quer que lhe diga?
- Não,
vais abrir a boca porque tenho uma surpresa para ti.
A mão larga escancarou-lhe a boca. Aterrorizado, Álvaro pressentiu
o próximo passo. A outra mão segurava um alicate. Sentiu-o a
penetrar na boca. O metal frio e as escamas de peixe a encherem-lhe o
palato.
- Não
devias fumar, doutorzinho. Os teus dentes estão a ficar uma
miséria. Vá lá, pára de espernear, fica quieto agora – e com
uns abanões fortes do pulso, arrancou-lhe um molar.
- Pronto,
este já não te vai dar problemas.
A dor instalava-se agora no peito, uma lança de fogo que atingia o
coração e que percorria a coluna e o braço esquerdo. A boca
sangrava profusamente.
- Vá
lá, não sejas maricas. Ou então falas já e acabamos com esta
merda. O que achas, hã?
- Ei!
Quero-te acordado a falar comigo, ouviste?
Despejou-lhe um balde de água sobre a cabeça. Álvaro gemia. A
cabeça pendente sobre o ombro esquerdo. Um veio de sangue correndo
sobre a camisa.
O “urso” abanava-lhe a cabeça tentando mantê-lo alerta. Era
notória a sua impaciência. Começava a dar murros nas bancadas de
madeira em redor e berrava com o inspetor.
- Estou
a ficar farto desta merda, ó doutor! Vais abrir essa boca de uma
vez, pá!
De rompante, pegou no alicate e desferiu-lhe um golpe na cara.
- Falas
ou não falas?
Na sua loucura, nem se deu conta de que Álvaro estava demasiado
frágil para resistir. Continuou a insultá-lo e a bater-lhe durante
longos minutos. Tinha-lhe soltado mais dois ou três dentes. O corpo
era agora um saco inerte, apoiado apenas pelas fitas que o prendiam à
cadeira.
A porta do armazém abriu-se num estrondo.
- O
que é que estás p'raí a fazer, caralho? Acabaste com esta merda
toda, pá! O gajo falou, ao menos?
- Não.
Mas há-de falar!
- Não
vez que o mataste, caralho?
- Achas?
Isso é só o gajo a armar-se. Doutorzinho de merda.
- Não,
pá! Está morto, não vês? Idiota de merda.
Mediram-lhe o pulso. Nada.
- Foda-se,
pá! Ainda vais arranjar com que a gente leve um tiro nos cornos,
pá. Então não tinhas tempo de fazer o gajo falar?
- Eh
pá, não pensei. Não pensei! O gajo começou a fazer-me uns nervos
do caralho com os seus modinhos e perdi a cabeça, o que é que
queres?
- O
que quero? Quero saber como vais explicar esta merda toda ao chefão,
é o que quero saber. Foda-se, pá! Idiota de merda.
- Tem
lá calma, ó Artur. Vamos lá pensar e resolver isto, porra.
- Tu
é que devias ter calma. Não devias ter acabado com o gajo antes
dele falar.
- Mas
não falou. E acho que o gajo não contou a ninguém.
- E
como é que sabes? Não lhe deste tempo.
- Sei
porque ameacei matar a mulher dele. Se o gajo tivesse falado a
alguém, tinha confessado para poupar a galdéria.
Ficaram a olhar-se em silêncio, na esperança de que tudo tivesse
sido realmente assim.
- Pronto,
acabou-se! Vamos fazer o que estava combinado e depois pensamos o
que dizer ao chefe.
Despiram-lhe as roupas rasgadas e vestiram-no com outras quase novas,
como se nada tivesse acontecido. Fizeram o nó da gravata de forma
tão meticulosa quanto as suas mãos torpes lhes permitiram.
Queimaram a cadeira e os trapos. Esfregaram o chão com sargaço e
tripas de peixe e lavaram-no com lixívia. Sentiram-se aliviados.
- Pronto,
vamos lá atirar com o gajo ao rio.
Levaram-no até ao pequeno molhe, embrulhado num plástico que mais
tarde queimariam também. Desembrulharam-no como a um rebuçado,
embalaram-no duas ou três vezes para ganharem balanço e lançaram-no
à água. O corpo, de braços e pernas estendidos como quem se rende
aos céus, ficou a flutuar alguns minutos, indeciso. Os dois
carrascos ficaram a olhá-lo, mais pela certeza de que cumpriam a
tarefa do que por qualquer remorso ou compaixão. Uma pequena onda
estendeu a sua generosidade sobre o corpo e ajudou-o a afundar-se. Os
outros dois lá fora, uma imagem cada vez mais difusa à superfície
da água, um foco de luz por trás.
Entretanto, tinha sido feita uma chamada para as autoridades e, no
cais de Porto Brandão, a escassas centenas de metros, as buscas
tinham começado. Os três inspetores do Banco prestavam declarações
contraditórias, atabalhoadas. Tinham visto como Álvaro caíra ao
rio. Ou ter-se-ia atirado? Tinha bebido ao jantar, sim. Muito. Pouco.
Não o suficiente para se descontrolar. Começaram a aperceber-se de
que tudo poderia correr mal, se continuassem a contradizer-se, e
decidiram que apenas um falaria. Os outros dois estariam demasiado
consternados com a tragédia.
A viúva continuava sem notícias. Tinha sabido da morte através de
um telefonema. Depois disso, nada. Quando o corpo finalmente apareceu
na Trafaria, doze dias depois, os três colegas do marido resolveram
visitá-la, viajando até à Madeira.
- Deolinda,
que tragédia!
- Oh
Jorge, você não me esconda nada, que eu estou tão aflita.
- Minha
senhora, Joaquim Antunes, colega do seu marido. Os meus sentimentos.
- Sérgio
Costa. Os meus sentimentos.
Ao primeiro contacto, Deolinda não se sentiu confortável na
companhia daqueles dois.
- Diga-me
lá, Jorge, como é que tudo isto foi acontecer, meu Deus? Eu ainda
não acredito que o meu Álvaro está morto. Não acredito, não
pode ser.
- Oh
Deolinda, o que é que eu lhe posso dizer? Fomos jantar todos
juntos. O Álvaro andava muito calado. Tinha começado a escrever o
relatório final da investigação e andava preocupado com aquilo.
Queríamos animá-lo, mas ele sentia-se cansado. Muito trabalho,
sabe? Depois fomos apanhar o cacilheiro e deu-se isto.
- Mas
isto o quê, homem de Deus? Como é que ele foi cair ao rio?
- Pois,
não sei. Estávamos os quatro na conversa e ele quis afastar-se um
bocado, para fumar um cigarro. De repente, deu-lhe um “ai” e ele
caiu.
Deolinda olhava os outros dois em silêncio e começava a sentir a
raiva a apoderar-se dela. A história estava muito mal contada.
- Mas
isso não me dá resposta nenhuma. Ele caiu assim, sem mais nem
menos? Eu não acredito nisso.
- Deolinda,
ele andava fora de si, por causa do tal relatório.
- Sim,
ele disse-me que tinha encontrado muitos podres, muitos podres. Mas
o que é que isso tem a ver com ele cair ao rio? E quem me diz que o
corpo que encontraram era o dele? E porque é que vocês não me
dizem mais nada? Vocês é que estavam com ele. Porque é que não o
acudiram?
- Deolinda,
nós não podíamos fazer nada. Era de noite e nenhum de nós é
nadador. Fomos à procura do telefone mais próximo e ligámos à
polícia - fez uma breve pausa e continuou - O que eu lhe quero
dizer é que talvez o Álvaro não tenha caído. Talvez ele se tenha
atirado.
- O
que é que você está para aí a dizer? O meu marido é um homem de
fé, nunca faria uma coisa dessas! E quem me diz que não foram
vocês que o atiraram?
- Não
diga isso, Deolinda! Como pode pensar uma coisa dessas? Nós até já
fomos interrogados pela polícia durante uma semana, e eles
deixaram-nos sair. Acha que estaríamos aqui, se tivéssemos alguma
coisa a ver com a morte do Álvaro?
- Ponham-se
lá fora, os três!
- Tenha
calma, Deolinda. Nós viemos em paz.
- Não
quero saber de mais conversa. Saiam!
- Está
bem, nós saímos. Mas vai ver que tudo isto vai ser esclarecido,
Deolinda.
Cinco dias mais tarde, a urna chegava à Madeira, selada. O
administrador do Banco esteve presente no funeral. Deixou que os
ânimos acalmassem e, dois dias depois, visitou a viúva.
- Minha
senhora, Rogério Carvalho, administrador do Banco. Posso entrar?
- Faça
favor – no pensamento de Deolinda passa agora uma série de
questões sem resposta. Apesar de não estar com disposição para
visitas, decide aproveitar a oportunidade..
- Antes
de mais, queria apresentar-lhe as minhas condolências, em meu nome
e em nome do Banco.
Silêncio.
- Vejo
que a senhora está consternada, como é natural, mas farei tudo o
que estiver ao meu alcance para a ajudar. Vou tratar de tudo para
que comece a receber a sua pensão de imediato. Sei que a senhora
tem dois filhos, um deles menor, e quero garantir que fiquem bem os
três.
- Para
ficar bem, senhor doutor, o que eu preciso é de respostas.
- Como
assim, minha senhora?
- Por
exemplo, preciso de saber o que aconteceu naquela noite maldita.
- Mas
isso só os três colegas do seu marido é que lhe podem dizer, os
que estavam com ele.
- Pois,
eles já cá estiveram e não disseram nada de jeito. Até me vieram
com a conversa que o meu marido se tinha atirado ao rio. O meu
marido, valha-me Deus! Cá para mim, eles sabem o que se passou,
sim. Ninguém me tira da cabeça que o mataram. Ele disse-me que o
caso em que estava a trabalhar era muito feio, que tinha encontrado
muita fruta podre, foi o que ele me disse. E foi essa gente quem o
matou.
- A
senhora não pode pensar uma coisa dessas. Os três rapazes não têm
nada a ver com o assunto, eles nem sequer foram detidos pela P.J.
Deolinda ficou de novo inquieta. “Os três rapazes”? Aquela
proximidade apanhou-a de surpresa.
- Mas,
diga-me lá. Que podres foram esses que o seu marido encontrou? Ele
comentou alguma coisa consigo?
- Não,
ele não me disse nada. Só me disse que tinha encontrado muitos
podres. Não sei de mais nada. Para mim já me basta esta história
toda cheirar mal. Como é que eu sei que foi o corpo do meu marido
que eu enterrei? Ninguém estava lá para o ver.
- O
corpo do seu marido foi identificado por dois colegas de trabalho.
- Sim,
duas pessoas de quem nunca ouvi falar. Eu sei lá se essa gente
conhecia o meu Álvaro! E onde está o relatório da autópsia? O
senhor com certeza também tem esse relatório e não me diz nada.
- A
senhora está a insinuar que eu lhe estou a esconder informação?
Isso é um insulto, minha senhora. Isso é injúria! Venho aqui
oferecer-lhe os meus préstimos e sou recebido com acusações?
Rogério Carvalho estava agora visivelmente irritado. As questões da
viúva deixavam-no desconfortável. Mas tinha já resposta para as
suas próprias questões. Ela não sabia nada sobre o relatório do
marido. Isso era uma boa notícia. Uma ótima notícia. Retirou-se de
forma desajeitada, mas seguro de que daquela casa não viria qualquer
ameaça.
Durante um violento incêndio na capital, no Verão de 1988, grande
parte dos documentos que poderiam ajudar à resolução do caso foram
destruídos. O processo de investigação aberto pelo Ministério
Público de Almada foi arquivado dois anos depois. O despacho que
arquivamento justifica a morte com causa natural. Porém, não é
claro. Indica duas hipóteses: suicídio ou enfarte e afogamento. A
família de Álvaro Mendonça nunca teve acesso ao relatório de
autópsia nem ao processo de investigação. O Ministério Público
de Almada e a Procuradoria Geral da República nunca lhes deram
qualquer resposta.
Deolinda só conseguiu receber a pensão ao fim de nove meses. Ao
contrário do prometido, Rogério Carvalho nunca a apoiou. Ao fim de
vinte e nove anos, continua sem saber o que aconteceu com o seu
marido.
Até hoje.
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