unfinished business

Um candeeiro a petróleo, uma luz difusa no reflexo da água, noite escura. A imagem cada vez mais distante, um corpo inerte que se afunda.
Acordou em sobressalto num quarto estranho, que depois reconheceu ser o do hotel onde se tinha instalado. Abriu a janela e acendeu um cigarro, observando a cidade a mover-se, sonolenta. Sentia o peso das horas de trabalho, o azedume de quem o recebia, a hipocrisia nos gestos e no trato. Não se deixou abater. Tomou um duche longo, lavando-se da noite inquieta. Barbeou-se com método e vestiu-se com a sobriedade de sempre. Desceu à sala de refeições, onde lhe serviram um bom pequeno-almoço. Observou os hóspedes de outras mesas, todos com o ar leve de quem está de férias, na maioria estrangeiros, com certeza.
Bom dia, Álvaro!
O cumprimento apanhou-o quase desprevenido, mas a familiaridade na voz lembrou-o dos três colegas de trabalho que o acompanhavam.
Bom dia, Jorge.
Estavas noutro mundo, homem. Dormiste descansado?
A pergunta parecia trazer um toque de ironia. Álvaro respondeu com naturalidade.
Bom, na verdade, poderia ter dormido um pouco mais. Mas, já sabes como eu sou, um pássaro madrugador.
Sim, sei. Fazem-te falta os ares da Madeira, é o que é.
Talvez, sim. Esta comissão de serviço já vai longa, mas acredito que vamos no bom caminho.
Sim, claro. Olha lá aqueles melros! Eles é que não madrugam nem que haja terramoto – olhando na direcção do elevador, Jorge vai cofiando o bigode com ar divertido.
Ouçam lá, parceiros, não tarda nada vão sem pequeno-almoço e ainda vos dá a fraqueza.
Joaquim e Sérgio servem-se de um café e sentam-se com os colegas.
Eh pá, vocês estão com uma cara de maus fígados! Que raça de gente. Então só eu é que tive bom dormir, hoje? Aqui o meu compadre acordou com os passarinhos, e vocês os dois parece que dormiram em asa de abutre.
A boa disposição de Jorge acabava sempre por por contagiar o ritmo de trabalho de Álvaro. Levantou-se de imediato.
Meus amigos, vamos lá começar o dia, que isto está a correr bem. Podemos dar em doidos, mas havemos de chegar ao fim.
Ora, assim é que é falar. Mexam-se lá, ó artistas. Vamos a isto!
Chegados à dependência do Banco na capital, os quatro inspectores, liderados por Álvaro, foram recebidos com a frieza habitual.
Bom dia.
- Sim?
Já posso falar com o Dr. Figueiredo?
- Infelizmente, não. O Dr. Figueiredo continua de baixa.
- Pois, compreendo. Nesse caso, eu e os meus colegas vamos para o gabinete do costume.
A rotina repetiu-se ainda por outros três meses. Longas horas sentados à secretária analisando documentos e cruzando dados. No gabinete exíguo, sem janelas, o ar tornava-se quase irrespirável. Ao fim de cada dia de trabalho, era um alívio poder sair daquele espaço, mover-se, respirar, mudar de ritmo.
Entretanto, Álvaro tinha-se instalado num apartamento pertencente ao Banco, evitando assim os dedos acusadores. Havia já quem dissesse que o inspetor queria apenas umas férias pagas na capital, num bom hotel, com boa mesa. Álvaro sentiu-se sempre injustiçado com este tipo de comentários, mas tentou não se deixar afetar. O tempo acabaria por revelar a verdade.
Os quatro jantavam regularmente num restaurante de Porto Brandão, o “Mira-Rio”. O ambiente era agradável, a comida bastante saborosa e as doses bem servidas. Além disso, a distância de Lisboa era suficiente para que se sentissem um pouco libertos, afastados dos assuntos de trabalho. No entanto, com o passar do tempo, Álvaro já não conseguia esconder a inquietação. Mostrava-se cada vez mais taciturno e quando falava era apenas para exprimir a preocupação com os factos.
Temos aqui um grande berbicacho.
Ó compadre, deixa-te lá de dramas, homem. Afinal é o nosso trabalho, ou não é?
Claro que é o nosso trabalho, mas tens a noção do que temos encontrado e de quem está envolvido, não tens?
Fala lá baixo, que as paredes têm ouvidos. Mas é claro que tenho noção, homem. Mas vamos com calma, havemos de dar a volta a isto.
Como assim, “havemos de dar a volta a isto”? Já fizeste bem a conta à quantidade de inimigos, de gente do poder a quem estamos a apertar os calos? Já pensaste bem nas consequências disto tudo?
Sim, já fiz contas a isso tudo, mas não vale a pena dramatizar, porra. E talvez se possa aligeirar qualquer coisita, aqui e ali. Fechar os olhos, sei lá!
O que estás para aí a dizer, Jorge? Mas tu achas mesmo que eu sou pessoa de fechar os olhos à realidade? O que queres dizer com aligeirar as coisas? Pensas que isto é uma brincadeira?
Pronto, homem, não se fala mais nisso. Só queria que comêssemos em paz e que não te atormentasses com essas tuas fixações.
Sérgio e Joaquim permaneciam calados, trocando olhares. Álvaro resolveu calar-se também. Havia já algum tempo que tinha reparado nas pequenas sugestões que iam surgindo nas conversas, mas desta vez Jorge tinha ido longe demais. Aligeirar qualquer coisa? Fechar os olhos? Começou a sentir-se encurralado, questionando as verdadeiras intenções da sua equipa. Decidiu que a partir desse momento iria manter para si algumas das informações que fosse recolhendo. Terminou a refeição e manteve-se em silêncio. Os outros três acabaram a noite num bar de Lisboa, mas ele regressou ao apartamento. Decidiu telefonar à mulher.
- Deolinda?
Oh, meu querido. Tinhas-me preocupada. Já não ligavas há tanto tempo. Está tudo bem?
- Sim, está tudo bem. Mas este trabalho tem-me dado água pela barba. Estou para aqui a descobrir muitos podres, tantos que nem fazes ideia. Gente importante. Ainda me vai trazer problemas.
- Pois, tu bem dizias. Mas para que é que eles te foram escolher para a inspeção, valha-me Deus?
- Vá, deixa lá isso. Não é nada de mais - tinha notado a preocupação na voz de Deolinda e resolveu mudar de assunto - Como estão os miúdos?
- Ora, estão bem. O Mário lá anda trabalhando na serralharia. Penso que o nosso pequeno é que não vai andando bem nos estudos. Mas já não falta muito para acabar o ano. Pode ser que tudo fique bem. E tu, quanto tempo ainda ficas aí?
- Não sei. Penso que não falta muito, também. Talvez o Pedro acabe o ano e eu acabe isto por aqui. Não sei.
- Deus queira! Deus queira! Que tu estás-me falando cá com uma voz...
- Não é nada, Deolinda. Não te preocupes. Hoje estou só cansado, é só isso.
- Conheço-te bem, conheço-te bem. Não vou deixar de ficar ralada, não senhor.
- Não te apoquentes. Um dia destes volto a ligar. Agora tenho de ir. Beijos para os rapazes.
- Beijinhos, meu querido. Bom descanso.
- Beijos.
Naquela noite, não conseguiu dormir. Ficou a olhar a languidez das nuvens, a cidade quieta, os gatos no seu movimento morno, o descanso dos pombos nos beirais. Todo aquele quadro lhe dava a sensação de pertença, de dignidade, muito diferente da realidade humana.
Decidiu entregar-se aos papéis, analisar todas as anotações, as incongruências, os detalhes de tudo o que o vinha atormentando. Não havia dúvidas. Toda aquela gente estava envolvida. Era gente corrupta que enchia os cofres particulares com tramas bem engendradas. Tudo aquilo era demasiado grande, o maior dos monstros, desde que se iniciara na inspeção. Sentia agora que a tarefa era ainda mais complexa, depois da conversa ao jantar. Questionava-se se os colegas estariam tão empenhados quanto ele. Estariam dispostos a dar a cara pelo que tinham descoberto ou iriam acobardar-se? Álvaro estava seguro de que o resto da equipa não tinha ainda a visão completa do quadro, de tudo o que tinha sido recolhido e interligado. Como reagiriam quando soubessem?
Ia amanhecendo. A presença humana dominava agora as ruas da cidade. As primeiras vozes, alguém que tosse, o ruídos dos carros que começam a circular. A cidade inquieta-se. A noite recolhe-se nas pequenas sombras, no silêncio das caves, no sono dos gatos.
Preparou um café, vestiu-se e decidiu caminhar um pouco pela cidade. Era uma manhã de Maio esplêndida, cheia de promessas de vida. Imaginou o colorido da sua ilha, a água fresca a correr nas levadas, a vegetação exuberante. Sentou-se por momentos junto ao Tejo a olhar o voo plano das gaivotas, a serenidade do rio.
Chegado ao Banco, agiu com naturalidade, embora lhe fosse impossível disfarçar o cansaço. As olheiras fundas e os movimentos torpes denunciavam-no. Reuniu-se com a sua equipa para lhe comunicar o que tinha decidido naquela noite. A recolha de dados estava concluída. Era a ele que cabia a elaboração do relatório final.
A notícia foi recebida com desagrado. Os três colegas consideravam que o trabalho estava longe de ser concluído, que havia ainda muitos dados por apurar.
Sim, admito que ainda haja dados por apurar. Mas, o que conseguimos reunir é mais do que suficiente para constituir elementos de prova. Esta noite estive a cruzar todos os dados que recolhemos e não há lugar para dúvidas.
Mas afinal que conclusões são essas, chefe? E nós não vamos participar na elaboração desse relatório?
Sérgio e Joaquim mostravam pela primeira vez algum interesse por todo o processo. Tinham feito sempre o menor dos esforços por concluir a investigação de forma célere e rigorosa. Álvaro havia pensado por diversas vezes por que razão aqueles dois lhe tinham sido enviados para a equipa.
Entrego-lhes uma cópia do relatório na devida altura, com certeza. Hoje é dia para deixarmos o gabinete em ordem e para eu pedir uma reunião com a gerência e com os quadros superiores. E pronto, o caso fica arrumado.
Jorge tinha permanecido calado. Trocara apenas alguns olhares com os outros dois e acabou por intervir apenas para falar no jantar.
Bom, se assim é, acho que podíamos voltar ao “Mira-Rio”, amanhã ou depois, e fazer um jantar de despedida. O que acham? Vou fazer uns telefonemas.
Não esperou pela resposta. Sérgio e Joaquim não escondiam o enfado, mas começaram a tratar de arrumar os seus pertences e de deixar o gabinete em ordem. No final da manhã, Álvaro almoçou no centro da cidade e recolheu-se ao apartamento para uma curta sesta.
Jorge tinha-lhe telefonado a avisar que o jantar de despedida, conforme lhe tinha chamado, estava marcado para dali a dois dias, para a noite do dia 16. Entretanto, Álvaro dedicara-se profundamente à elaboração do relatório.
Na manhã do dia 16, acordou mais cansado do que quando se deitara. Tinha sonhado com águas revoltas, algas que lhe prendiam os pés, seres aquáticos medonhos. Sentiu-se indisposto. Abriu as janelas e fumou dois cigarros seguidos. Queria muito deixar de fumar, mas este não era com certeza o dia adequado para essa demanda. Assim que regressasse a casa, mais descansado depois de acabada a inspecção, pensaria melhor no assunto.
Preparou um café e sentou-se de imediato para escrever mais umas páginas do relatório, com atenção redobrada aos detalhes. Surpreendeu-se com a energia que subitamente se apoderou dele, com o ritmo certeiro das palavras e dos cálculos. Quando o telefone tocou, apercebeu-se da escuridão que o abraçava, completamente perdido no tempo.
- Estou?
Álvaro? Onde é que te meteste, homem? Já perdemos um barco. O próximo sai daqui a 15 minutos e tu ainda estás em casa? O que te deu?
- Jorge? Eh pá, desculpa. Deixei-me levar pelo entusiasmo. Daqui a pouco estou aí.
- Vá lá, despacha-te. O bacalhau frio sabe a palha, homem.
- Sim, até já.
Foram os últimos a entrar no cacilheiro, já noite escura. Acabou por se distrair na viagem. O entusiasmo que sentia em relação ao jantar foi-se avolumando, sem entender bem porquê. Talvez sentisse que era uma boa compensação por um trabalho bem feito.
Chegados à outra margem, percorreram a pé a curta distância até ao “Mira-Rio”. A boa disposição de Álvaro contrastava agora com o ar apreensivo dos colegas. Um pombo entre corvos.
Então? Isto é que vai para aí um silêncio. Estão com fastio?
Jorge pareceu acordar de um qualquer cenário em terra distante.
O quê?
Bolas, está mesmo tudo a dormir. Perguntei o que se passa nesse silêncio todo, se foi a fome que vos tirou o pio.
Ah! Agora que falas nisso, acho que até perdi a fome. Mas quando vir a posta de bacalhau à minha frente, o caso muda de figura.
Joaquim e Sérgio permaneceram em silêncio, mas Álvaro já se tinha acostumado ao facto de aqueles dois só saberem falar de dinheiro, e deixou-os no seu canto.
Já no “Mira-Rio”, foram recebidos como velhos amigos e acompanhados à mesa que lhes estava reservada.
Então, cavalheiros, trago o vinho da casa?
Sim, traga-nos o vinho da casa e uns pastéis. Parece que a estes homens lhes deu a fraqueza.
Vieram os pastéis de bacalhau, rissóis e croquetes; azeitonas, presunto e broa de milho. A atmosfera àquela hora estava já mais descontraída. Apesar de ser um restaurante bastante requisitado, apenas algumas mesas permaneciam ocupadas, devido ao adiantado da hora. Foi servida a refeição e os quatro inspectores pareciam agora quatro verdadeiros amigos, animados pela conversa e pelo vinho. A sala foi ficando vazia até restarem somente os quatro convivas. Pediram uma aguardente velha para ajudar à digestão e um café para lhes redobrar o ânimo.
Subitamente, Álvaro começou a sentir-se indisposto e, interiormente, repreendeu-se pelos excessos da refeição. Tentou recompor-se mas o corpo já não obedecia a qualquer estratégia. Percebeu como era levado em braços, completamente inerte, sem controlo. Chegado a uma divisão cinzenta, viu que havia apenas um foco de luz, um candeeiro a petróleo. Delirava, com certeza. A visão era algo imprecisa, “e os hospitais não têm iluminação a petróleo”, pensou. Tentou respirar fundo para recuperar forças e acalmar, mas sentiu-se desfalecer.
Recuperou os sentidos, amarrado a uma cadeira, ainda frágil. Lentamente, voltou a ter a visão mais definida e foi decifrando o local em que se encontrava, um armazém lúgubre, unicamente com uma pequena janela de ventilação. Viu que era ainda de noite e sentiu o ar quente e abafado do espaço. Pendurado no tecto, à altura de um homem de média estatura, estava um candeeiro a petróleo. Não tinha delirado. Percebeu que não estava só. Sentiu o cheiro forte de um charuto barato, uma nuvem de fumo que ia revolteando, o ar cada vez mais rarefeito.
Ora, até que enfim. O doutorzinho acordou!
“Doutorzinho?! Apanharam o homem errado. O que é que se passa?”
O pensamento era ainda lento, volúvel.
Então diga lá, doutorzinho. Andou por aí a meter o nariz onde não era chamado, não foi? Quem se mete na merda, vai ter de levar com a merda de volta. E você tem muita merda para engolir, muita merda!
Agora as coisas começavam a fazer sentido. Tinha de facto metido o nariz em coisas perigosas, em muita merda, como o outro dizia. E parecia que as consequências eram bem mais devastadoras do que poderia ter imaginado.
Ora vamos lá começar a falar. Esse seu relatório foi mostrado a quem, doutorzinho?
Foi analisando a capacidade de destruição daquele homem, o seu ar de urso, a barba de três dias, o suor nauseabundo na camisola de alças preta, desbotada. Os diminutivos irritavam-no, mas eram um sinal de desdém, o que diminuía as hipóteses de negociação.
Não estou a perceber – conseguiu dizer com esforço.
Oh, o doutorzinho não está a perceber... Então vou-lhe explicar. Há um relatoriozinho que está a fazer sobre um certo Banco, não há? E eu nem quero saber o que está lá escrito. A ideia é mesmo essa, não se saber o que lá está escrito. Por isso, vou repetir, só esta vez. Esse relatório foi mostrado a quem?
Não foi mostrado a ninguém. Comecei a escrevê-lo hoje. Bom, não sei bem se foi hoje, não sei há quanto tempo estou aqui, mas...
Deixa-te de merdas, doutorzinho. Mostraste esse relatório a quem?!
Álvaro conseguia perceber que o homem começava a perder o controlo, mas não tinha outra resposta para lhe dar.
É o que estou a dizer. A ninguém! A ninguém!
Bom, pelo menos sei que não o mostraste aos pacóvios dos teus colegas. Esses sempre estiveram connosco. Já fizeram desaparecer as papeladas deles e receberam uns trocos. Mas tu não sabias disso, pois não? Surpresa! - e solta uma gargalhada com gosto.
São uns cagões. Sabem que, se abrirem a boca, cortamos as goelas às galdérias que têm lá em casa e aos seus rebentozinhos mal-cheirosos. Mas tu és um caso à parte. Tu és perigoso. Mas eu vou amolecer-te.
Álvaro percebia agora as reações dos colegas, o enfado, os pequenos boicotes. Cerrou os punhos e sentiu como a raiva se apoderava de todo o corpo.
Cobardes... - disse em surdina.
Cobarde, eu?
Sem esperar mais respostas, o “urso” puxou uma longa passa no charuto e deixou-o em brasa. Soltou o fumo nos olhos de Álvaro e espetou-lhe com o charuto na testa. A dor espalhou-se pela cabeça como um capacete em chamas. Sentiu os ouvidos a estalarem num zumbido forte, estremecendo. Os gritos fizeram um pequeno eco no armazém, mais nada. Não viria ninguém acudi-lo, estava agora certo disso. Deixou de ver por alguns segundos.
Não, não te vais apagar já, doutorzinho. Ainda falta muito caminho para andar. A não ser que abras a boca e acabamos com a conversa - sem aviso, espeta-lhe uma bofetada de mão bem aberta – Então, estás acordado agora?
Álvaro começou a sentir a pulsação forte nas têmporas, um batimento descompassado. Reparava agora que, de algum lugar próximo, vinha um cheiro intenso a peixe.
Vais falar agora ou vais querer cagar-te todo?
Já lhe disse. Quantas vezes já lhe disse? Não mostrei o relatório a ninguém. Ia mostrá-lo para quê? A quem? Está lá, na minha pasta, na secretária do apartamento.
Isso já nós sabemos. Ou achas que somos parvos? O que eu quero saber é a quem disseste o que lá escreveste, e o que ias escrever.
Não disse a ninguém, homem. Para quê insistir nesta conversa?
Queres que a gente vá cortar a goela à tua galdéria, doutorzinho? Se é isso que queres, também se arranja.
Não, pelo amor de Deus, não faça isso! Eu já lhe disse que não falei a ninguém no assunto.
E quem me garante que não falaste com ela?
Mas para que é que eu ia falar com ela sobre isto? Ela não tem nada a ver com o assunto. Juro-lhe!
Vamos lá abrir essa boca.
Que mais quer que lhe diga?
Não, vais abrir a boca porque tenho uma surpresa para ti.
A mão larga escancarou-lhe a boca. Aterrorizado, Álvaro pressentiu o próximo passo. A outra mão segurava um alicate. Sentiu-o a penetrar na boca. O metal frio e as escamas de peixe a encherem-lhe o palato.
Não devias fumar, doutorzinho. Os teus dentes estão a ficar uma miséria. Vá lá, pára de espernear, fica quieto agora – e com uns abanões fortes do pulso, arrancou-lhe um molar.
Pronto, este já não te vai dar problemas.
A dor instalava-se agora no peito, uma lança de fogo que atingia o coração e que percorria a coluna e o braço esquerdo. A boca sangrava profusamente.
Vá lá, não sejas maricas. Ou então falas já e acabamos com esta merda. O que achas, hã?
Ei! Quero-te acordado a falar comigo, ouviste?
Despejou-lhe um balde de água sobre a cabeça. Álvaro gemia. A cabeça pendente sobre o ombro esquerdo. Um veio de sangue correndo sobre a camisa.
O “urso” abanava-lhe a cabeça tentando mantê-lo alerta. Era notória a sua impaciência. Começava a dar murros nas bancadas de madeira em redor e berrava com o inspetor.
Estou a ficar farto desta merda, ó doutor! Vais abrir essa boca de uma vez, pá!
De rompante, pegou no alicate e desferiu-lhe um golpe na cara.
Falas ou não falas?
Na sua loucura, nem se deu conta de que Álvaro estava demasiado frágil para resistir. Continuou a insultá-lo e a bater-lhe durante longos minutos. Tinha-lhe soltado mais dois ou três dentes. O corpo era agora um saco inerte, apoiado apenas pelas fitas que o prendiam à cadeira.
A porta do armazém abriu-se num estrondo.
O que é que estás p'raí a fazer, caralho? Acabaste com esta merda toda, pá! O gajo falou, ao menos?
Não. Mas há-de falar!
Não vez que o mataste, caralho?
Achas? Isso é só o gajo a armar-se. Doutorzinho de merda.
Não, pá! Está morto, não vês? Idiota de merda.
Mediram-lhe o pulso. Nada.
Foda-se, pá! Ainda vais arranjar com que a gente leve um tiro nos cornos, pá. Então não tinhas tempo de fazer o gajo falar?
Eh pá, não pensei. Não pensei! O gajo começou a fazer-me uns nervos do caralho com os seus modinhos e perdi a cabeça, o que é que queres?
O que quero? Quero saber como vais explicar esta merda toda ao chefão, é o que quero saber. Foda-se, pá! Idiota de merda.
Tem lá calma, ó Artur. Vamos lá pensar e resolver isto, porra.
Tu é que devias ter calma. Não devias ter acabado com o gajo antes dele falar.
Mas não falou. E acho que o gajo não contou a ninguém.
E como é que sabes? Não lhe deste tempo.
Sei porque ameacei matar a mulher dele. Se o gajo tivesse falado a alguém, tinha confessado para poupar a galdéria.
Ficaram a olhar-se em silêncio, na esperança de que tudo tivesse sido realmente assim.
Pronto, acabou-se! Vamos fazer o que estava combinado e depois pensamos o que dizer ao chefe.
Despiram-lhe as roupas rasgadas e vestiram-no com outras quase novas, como se nada tivesse acontecido. Fizeram o nó da gravata de forma tão meticulosa quanto as suas mãos torpes lhes permitiram. Queimaram a cadeira e os trapos. Esfregaram o chão com sargaço e tripas de peixe e lavaram-no com lixívia. Sentiram-se aliviados.
Pronto, vamos lá atirar com o gajo ao rio.
Levaram-no até ao pequeno molhe, embrulhado num plástico que mais tarde queimariam também. Desembrulharam-no como a um rebuçado, embalaram-no duas ou três vezes para ganharem balanço e lançaram-no à água. O corpo, de braços e pernas estendidos como quem se rende aos céus, ficou a flutuar alguns minutos, indeciso. Os dois carrascos ficaram a olhá-lo, mais pela certeza de que cumpriam a tarefa do que por qualquer remorso ou compaixão. Uma pequena onda estendeu a sua generosidade sobre o corpo e ajudou-o a afundar-se. Os outros dois lá fora, uma imagem cada vez mais difusa à superfície da água, um foco de luz por trás.
Entretanto, tinha sido feita uma chamada para as autoridades e, no cais de Porto Brandão, a escassas centenas de metros, as buscas tinham começado. Os três inspetores do Banco prestavam declarações contraditórias, atabalhoadas. Tinham visto como Álvaro caíra ao rio. Ou ter-se-ia atirado? Tinha bebido ao jantar, sim. Muito. Pouco. Não o suficiente para se descontrolar. Começaram a aperceber-se de que tudo poderia correr mal, se continuassem a contradizer-se, e decidiram que apenas um falaria. Os outros dois estariam demasiado consternados com a tragédia.
A viúva continuava sem notícias. Tinha sabido da morte através de um telefonema. Depois disso, nada. Quando o corpo finalmente apareceu na Trafaria, doze dias depois, os três colegas do marido resolveram visitá-la, viajando até à Madeira.
Deolinda, que tragédia!
Oh Jorge, você não me esconda nada, que eu estou tão aflita.
Minha senhora, Joaquim Antunes, colega do seu marido. Os meus sentimentos.
Sérgio Costa. Os meus sentimentos.
Ao primeiro contacto, Deolinda não se sentiu confortável na companhia daqueles dois.
Diga-me lá, Jorge, como é que tudo isto foi acontecer, meu Deus? Eu ainda não acredito que o meu Álvaro está morto. Não acredito, não pode ser.
Oh Deolinda, o que é que eu lhe posso dizer? Fomos jantar todos juntos. O Álvaro andava muito calado. Tinha começado a escrever o relatório final da investigação e andava preocupado com aquilo. Queríamos animá-lo, mas ele sentia-se cansado. Muito trabalho, sabe? Depois fomos apanhar o cacilheiro e deu-se isto.
Mas isto o quê, homem de Deus? Como é que ele foi cair ao rio?
Pois, não sei. Estávamos os quatro na conversa e ele quis afastar-se um bocado, para fumar um cigarro. De repente, deu-lhe um “ai” e ele caiu.
Deolinda olhava os outros dois em silêncio e começava a sentir a raiva a apoderar-se dela. A história estava muito mal contada.
Mas isso não me dá resposta nenhuma. Ele caiu assim, sem mais nem menos? Eu não acredito nisso.
Deolinda, ele andava fora de si, por causa do tal relatório.
Sim, ele disse-me que tinha encontrado muitos podres, muitos podres. Mas o que é que isso tem a ver com ele cair ao rio? E quem me diz que o corpo que encontraram era o dele? E porque é que vocês não me dizem mais nada? Vocês é que estavam com ele. Porque é que não o acudiram?
Deolinda, nós não podíamos fazer nada. Era de noite e nenhum de nós é nadador. Fomos à procura do telefone mais próximo e ligámos à polícia - fez uma breve pausa e continuou - O que eu lhe quero dizer é que talvez o Álvaro não tenha caído. Talvez ele se tenha atirado.
O que é que você está para aí a dizer? O meu marido é um homem de fé, nunca faria uma coisa dessas! E quem me diz que não foram vocês que o atiraram?
Não diga isso, Deolinda! Como pode pensar uma coisa dessas? Nós até já fomos interrogados pela polícia durante uma semana, e eles deixaram-nos sair. Acha que estaríamos aqui, se tivéssemos alguma coisa a ver com a morte do Álvaro?
Ponham-se lá fora, os três!
Tenha calma, Deolinda. Nós viemos em paz.
Não quero saber de mais conversa. Saiam!
Está bem, nós saímos. Mas vai ver que tudo isto vai ser esclarecido, Deolinda.
Cinco dias mais tarde, a urna chegava à Madeira, selada. O administrador do Banco esteve presente no funeral. Deixou que os ânimos acalmassem e, dois dias depois, visitou a viúva.
Minha senhora, Rogério Carvalho, administrador do Banco. Posso entrar?
Faça favor – no pensamento de Deolinda passa agora uma série de questões sem resposta. Apesar de não estar com disposição para visitas, decide aproveitar a oportunidade..
Antes de mais, queria apresentar-lhe as minhas condolências, em meu nome e em nome do Banco.
Silêncio.
Vejo que a senhora está consternada, como é natural, mas farei tudo o que estiver ao meu alcance para a ajudar. Vou tratar de tudo para que comece a receber a sua pensão de imediato. Sei que a senhora tem dois filhos, um deles menor, e quero garantir que fiquem bem os três.
Para ficar bem, senhor doutor, o que eu preciso é de respostas.
Como assim, minha senhora?
Por exemplo, preciso de saber o que aconteceu naquela noite maldita.
Mas isso só os três colegas do seu marido é que lhe podem dizer, os que estavam com ele.
Pois, eles já cá estiveram e não disseram nada de jeito. Até me vieram com a conversa que o meu marido se tinha atirado ao rio. O meu marido, valha-me Deus! Cá para mim, eles sabem o que se passou, sim. Ninguém me tira da cabeça que o mataram. Ele disse-me que o caso em que estava a trabalhar era muito feio, que tinha encontrado muita fruta podre, foi o que ele me disse. E foi essa gente quem o matou.
A senhora não pode pensar uma coisa dessas. Os três rapazes não têm nada a ver com o assunto, eles nem sequer foram detidos pela P.J.
Deolinda ficou de novo inquieta. “Os três rapazes”? Aquela proximidade apanhou-a de surpresa.
Mas, diga-me lá. Que podres foram esses que o seu marido encontrou? Ele comentou alguma coisa consigo?
Não, ele não me disse nada. Só me disse que tinha encontrado muitos podres. Não sei de mais nada. Para mim já me basta esta história toda cheirar mal. Como é que eu sei que foi o corpo do meu marido que eu enterrei? Ninguém estava lá para o ver.
O corpo do seu marido foi identificado por dois colegas de trabalho.
Sim, duas pessoas de quem nunca ouvi falar. Eu sei lá se essa gente conhecia o meu Álvaro! E onde está o relatório da autópsia? O senhor com certeza também tem esse relatório e não me diz nada.
A senhora está a insinuar que eu lhe estou a esconder informação? Isso é um insulto, minha senhora. Isso é injúria! Venho aqui oferecer-lhe os meus préstimos e sou recebido com acusações?
Rogério Carvalho estava agora visivelmente irritado. As questões da viúva deixavam-no desconfortável. Mas tinha já resposta para as suas próprias questões. Ela não sabia nada sobre o relatório do marido. Isso era uma boa notícia. Uma ótima notícia. Retirou-se de forma desajeitada, mas seguro de que daquela casa não viria qualquer ameaça.
Durante um violento incêndio na capital, no Verão de 1988, grande parte dos documentos que poderiam ajudar à resolução do caso foram destruídos. O processo de investigação aberto pelo Ministério Público de Almada foi arquivado dois anos depois. O despacho que arquivamento justifica a morte com causa natural. Porém, não é claro. Indica duas hipóteses: suicídio ou enfarte e afogamento. A família de Álvaro Mendonça nunca teve acesso ao relatório de autópsia nem ao processo de investigação. O Ministério Público de Almada e a Procuradoria Geral da República nunca lhes deram qualquer resposta.
Deolinda só conseguiu receber a pensão ao fim de nove meses. Ao contrário do prometido, Rogério Carvalho nunca a apoiou. Ao fim de vinte e nove anos, continua sem saber o que aconteceu com o seu marido.

Até hoje.

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